MNAS #24: Mariangela Hungria
“Nós, mulheres, temos um papel muito mais importante na segurança alimentar do que os homens, mas isso raramente é falado”.
Você, leitora, já deve ter visto algum meme ou proferido a frase: “eu queria ter a autoestima de um homem mediano”, durante um momento de insegurança.
Digo isso porque o meu primeiro pensamento quando a Gi me contou que a ganhadora do World Food Prize, é uma mulher brasileira e que deveríamos entrevistá-la foi: “Jamais que ela vai topar”.
Mas foi um alívio, uma honra e uma vontade imensa de viver e de conquistar o mundo quando tivemos o retorno de: sim, Mariangela Hungria, engenheira agrônoma e a primeira brasileira a ganhar o considerado Nobel da agricultura ia tomar um café conosco - mesmo que à distância - e ser a inspiração desta edição do #MulherNoAgroSim.
Agrônoma desde criança
Mariangela não tem raízes no agro. Mas foi sua avó, professora de ciências, que despertou a vontade de fazer ciência na agricultura quando a presenteou com um livro de microbiologia.
“Eu me sentia muito triste quando via pessoas passando fome, e aí eu falei para minha avó que gostaria de trabalhar para ajudar as pessoas a não terem fome, então o caminho natural era eu produzir alimentos. Eu fui para São Paulo fazer o ginásio porque ganhei bolsa em um colégio de elite, o Colégio Rio Branco, eu era sempre a primeira aluna da classe e quando chegou o momento de prestar vestibular e eu falei que queria fazer Agronomia, que não era uma profissão tão prestigiada na época, os professores ficaram horrorizados e chamaram a minha mãe para saber o que tinha de errado comigo. Minha mãe disse que desde criança eu falava disso, que eu queria ajudar a produzir alimentos”.
Ali nos anos 70, ser da Engenharia Agronômica não era tão incentivado como era ser da Medicina, por exemplo. Mas Mariangela viu esse cenário mudar e, vale ressaltar, muito por sua paixão e dedicação à agricultura.
“Desde a faculdade queria seguir pela microbiologia por causa do livro que minha avó me deu, então entrei bem determinada que queria estudar biológicos. Mas isso foi desafiador porque, quando iniciei a faculdade em 1976, era o auge da adubação química por conta do trabalho de Norman Borlaug, que revolucionou a agricultura na época. Foi durante a Revolução Verde que eu entrei na faculdade. A gente tem que entender que esse momento foi muito importante, inclusive para o Brasil, que ainda importava alimentos na época, e usando essa estratégia de adubação química pesada e melhoramento genético, o Brasil conseguiu autossuficiência alimentar e dava os primeiros passos para a exportação”.
Diante do cenário da época, eram poucas disciplinas voltadas para biológicos na Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz" (Esalq/USP) onde se formou. Foi só no último semestre que esse contato aconteceu.
“Eu terminei a faculdade e fui para o mestrado porque fazer pesquisa e ciência era o que eu queria. Eu apliquei para uma bolsa e planejei: se eu passasse ia continuar, já que eu já tinha duas filhas para criar. Se não conseguisse eu teria que ir para o mercado de trabalho. Eu não tinha problema com isso. Eu fiquei muito feliz quando consegui bolsa e poderia continuar na área que queria, mesmo que fosse um lugar de muito preconceito, tanto que estudei uma coisa muito básica na minha tese: balanço energético do processo de fixação biológica de nitrogênio”.
Encontros
Depois da graduação e do mestrado em Piracicaba, interior de São Paulo, Mariangela foi convidada pela icônica Johanna Döbereiner para fazer doutorado na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, construindo sua tese na Embrapa, onde Johanna era chefe.
“Ela era muito empolgada com aplicação na agricultura, mas também era encantada com ciência básica, então fiz o meu doutorado também em um assunto bastante básico de fisiologia. Oito meses depois, a doutora Johanna me contratou. Terminei o doutorado e fui fazer meu pós-doutorado na Cornell University, nos Estados Unidos da América. Eu estava muito bem formada, em conceitos, em ciência, mas não tinha a visão e a vivência da agricultura, que era o que eu queria. Quando voltei, pedi transferência para o Paraná, para a Embrapa Soja. Era por motivos familiares, mas foi o momento que considero que virei profissional, porque era meu grupo de pesquisa, meu laboratório e podia colocar em prática tudo o que sempre acreditei”.
O foco, então, foi aplicar suas pesquisas sobre uso de biológicos em larga escala: “Se funcionasse para grandes agricultores, com teto de produtividade, funcionaria para qualquer produtor. Essa foi a oportunidade que tive de colocar em prática, fazer pesquisas para comprovar que poderia haver teto de produtividade com biológicos, substituindo total ou parcialmente a adubação química, ter muito convívio com agricultores, de aliar a ciência básica que eu amo à prática”.
40 milhões de hectares
Fazendo o que ama e da forma como acredita coloca a Mariangela como uma das mulheres mais importantes da agricultura brasileira. Por conta das suas pesquisas e aplicações com tratamentos biológicos, reduzindo a necessidade de químicos, 40 milhões de hectares foram beneficiados, gerando economia de US$25 bilhões ao ano no bolso dos agricultores e evitando mais de 230 milhões de toneladas de emissão de equivalentes de CO² por ano. É por tanto que Mariangela se torna uma heroína viva da agricultura brasileira.
É aí que entra o World Food Prize. Ele foi idealizado por Norman Borlaug, vencedor do Prêmio Nobel da Paz em 1970 por seu trabalho na agricultura com o uso de insumos químicos para aumentar a produção de alimentos no mundo, em um momento em que a fome era uma ameaça iminente. Ele quis dar continuidade a essa homenagem criando, em 1986, o Prêmio Mundial da Alimentação, valorizando pessoas que contribuem para o combate à fome.
No dia 13 de maio de 2025 foi anunciada a vencedora, a Mariangela, cujas descobertas construídas ao longo de 40 anos ajudaram o Brasil a se tornar uma potência agrícola global através do desenvolvimento de tecnologias focadas na microbiologia do solo.
“É difícil de acreditar que ganhei esse prêmio. Ele me gerou várias reflexões. Eu notei que, tirando minha avó que foi minha grande incentivadora, não falam muito sobre como nós, mulheres, podemos ser premiadas. A gente acha que não merece. Se fosse um homem, ele falaria que mereceu. Mas eu demorei a acreditar, ficava achando que eles iam voltar atrás e retirar o prêmio de mim”.
Na faculdade, em uma sala com 150 alunos, 40 eram mulheres: “o pior não era ser majoritariamente masculino, é ser majoritariamente machista. Para piorar, eu engravidei no segundo ano da faculdade, depois tive uma filha com necessidades especiais e eu queria trabalhar com biológicos. Todo mundo falava que eu não ia chegar a lugar nenhum”.
Seja agrônoma e seja mãe
Mariangela enfrentou muitos desafios para manter suas convicções firmes: “Me ofereceram muitas oportunidades de mudar de linha de pesquisa para ganhar mais estudando adubos químicos, mas eu nunca tive dúvidas, por mais difícil que pudesse ser, eu realmente queria aquilo. A mulher, de modo geral, é colocada como cuidadora. Eu sempre procurei me desdobrar e deixar bem claro para os dois lados: eu amo ser mãe, adoro minhas filhas e jamais seria feliz se não tivesse minhas filhas. E eu amo minha pesquisa e jamais teria sido feliz se não pudesse ser uma pesquisadora. Eu sempre deixei claro que esses meus dois lados são prioridade. Eu sempre falo para minhas alunas e orientandas: você quer ser mãe, seja! Não fica esperando o momento ideal, porque o tempo passa. Seja mãe porque, com o tempo, as coisas vão se ajeitando. A gente não precisa deixar nossos sonhos por causa da profissão”.
Por todas nós
Quando Mariangela foi premiada pelo World Food Prize, ela não venceu sozinha. Ela faz questão de levar e lembrar de todas as mulheres que fazem a agricultura acontecer.
“Não é só a Mariangela que está subindo. Eu dedico esse prêmio às mulheres, não só as da agricultura, mas as da segurança alimentar, porque se não fossem as mulheres a gente teria um problema muito mais grave de insegurança alimentar, e a importância das mulheres nisso é invisível. Ninguém lembra da agricultura familiar, onde a maioria são mulheres que plantam 70% do que a gente come, ninguém fala das mulheres que escolhem as melhores sementes para plantar na safra seguinte, ninguém fala das mulheres que plantam hortas familiares e nas comunidades, que passam os saberes das plantas medicinais de geração para geração, que preparam a comida da família com o mais nutritivo que elas têm à disposição. Esse é um prêmio de alimentação, alimentação é segurança alimentar, e nós mulheres temos um papel muito mais importante nisso do que os homens, mas isso raramente é falado, então eu tenho chamado a atenção para isso”.
#MulherNoAgroSim
Mariangela tem um olhar atento ao momento que estamos vivendo enquanto mulheres. Sim, há avanços. Mas também há retrocessos ou aspectos que não estão sendo levados em consideração.
“Eu tinha duas filhas e a bolsa de mestrado, depois de doutorado e com essas bolsas eu não tinha possibilidade de esbanjar, mas conseguia pagar minhas contas. Hoje um valor de bolsa eu não conseguiria manter minhas filhas. Hoje, uma mãe não consegue fazer um mestrado ou um doutorado e se dedicar integralmente a isso, porque o valor da bolsa é extremamente baixo. Não é sobre abrir vagas para mulheres, é dar oportunidade em todo o contexto, porque não são oferecidas condições mínimas para uma mãe manter adequadamente a vida dos filhos”, salienta.
Hoje a Mariangela é uma inspiração para nós. E ela conta quem foram as suas: sua avó, que a incentivou a ser cientista, e a Johanna Döbereiner, sua mentora.
“Joahnna não era só brilhante na ciência, ela era brilhante para mulheres, na equidade, porque quando ela me ofereceu o emprego, eu estava há 8 meses fazendo doutorado, eu era uma mulher com duas filhas e nenhum parente morando perto, e ela não viu nada disso, ela viu o amor e a dedicação que eu tinha à ciência, ela não viu as limitações que possivelmente um homem veria. Ela foi minha mentora científica, me ensinou a pensar. A presidente da Academia Brasileira de Ciências, Helena Nader, é uma mulher que tenho profundo respeito. Ela tem uma energia, ela é incansável na busca da ciência brasileira. Ela me inspira, porque quando estou cansada, penso no pique dela e encontro forças. Pela honestidade, pela ética e pela luta pela ciência brasileira”.
A Mariangela é daquelas mulheres que dá vontade de ficar conversando por horas nos mais diversos assuntos. Ela é leve, acolhedora e sabe que a sua felicidade e seu amor pelo trabalho e pelas suas filhas são prioridade. O que vem a partir disso é consequência, como o orgulho de uma trajetória incrível e de um prêmio que marca o quanto ela fez com o que acredita.
Que a Mariangela inspire você, nossa leitora, como inspirou a gente nesses exatos 46 minutos de conversa que fizeram nosso dia ficar muito mais feliz.
Muito inspirador!!! Adorei!