MNAS #23: Giulia Sanches
“É sobre pertencer, porque uma vez que você tem certeza que você pertence àquele universo, você não vai dar atenção a quem diz que não”.
Quando a gente é criança, temos a liberdade de pensar grande, porque as barreiras da razão ainda não nos foram impostas. Meu sonho quando criança era ser escritora, criar e contar histórias.
Aí chega a fase adulta, que nem é tão adulta assim porque temos por volta de 17 anos e precisamos ser mais racionais. Quando possível, precisamos unir o sonho de infância ao ganha-pão ou ao que, em teoria, seremos eternamente felizes por fazer.
Minha aposta racional foi ser jornalista. Sim, eu conto histórias. Mas estas, diferente do que eu almejava na infância, são baseadas na realidade. E sim, sou feliz por ter encontrado esse meio campo entre o sonho de infância e o fazer de adulto.
A #MulherNoAgroSim de hoje percorreu meios pouco convencionais para alcançar seu sonho de infância. Se desencontrou e reencontrou neste caminho. E o mais importante: tem a profissão que toda criança uma vez na vida quis ter.
Cientista
Giulia Sanches é engenheira agrônoma, mas, “acima de tudo, cientista, porque já tentei não ser e não deu muito certo”, como afirma.
Ela nunca havia pensado em cursar Agronomia, pois tinha muito firme desde a infância que gostaria de ser cientista, especificamente na área de Geologia ou Arqueologia, visto que seus olhos brilharam quando assistia filmes e séries históricas sobre o assunto. A Múmia, aliás, é seu favorito da infância.
“Eu coloquei na cabeça que queria ser arqueóloga, depois paleontóloga, mas não sabia como chegar nisso. Na minha família não tem ninguém do meio científico, então dependia muito de ir atrás desse conhecimento. Quando estava terminando o ensino médio, fiz alguns planos de carreira e, de primeira, passei numa faculdade de Geografia lá no meu estado, Amazonas. Eu fiz só um semestre, mas ele foi importante para abrir a minha mente, então decidi focar minha nota do Enem em Geologia. Como a gente tem que colocar duas opções de curso, meu melhor amigo, que tinha entrado em Agronomia, me incentivou a ter o curso como segunda opção, porque tem algumas disciplinas de solos e ele achou que eu poderia gostar. Coloquei as duas opções sem uma ordem de prioridade, considerando a ordem alfabética, como apareciam. A nota de corte das duas foi a mesma, mas eles consideram a primeira opção. Então me matriculei na Agronomia”.
Matriculada em uma universidade federal, Giulia teve a possibilidade de cursar disciplinas que incluíam estudos de solo na Agronomia e em outros cursos, então acabou estudando Geologia por tabela.
A fase do trabalho de conclusão de curso foi desafiadora, pois muitos professores não viam potencial no interesse da Giulia por solos na agricultura. Até que ela encontrou um professor cuja atuação é em plantas daninhas.
“Eu estava sem muito interesse mas, quando ele me abriu as portas do laboratório dele, me deu muitas oportunidades dentro da Agronomia. Ele mostrou o projeto com que estava trabalhando e perguntou com o que eu trabalhava. Eu disse que trabalhava com solo e nutrição de plantas, então ele sugeriu de testar como as plantas daninhas competem por nutrientes e impactam na deficiência nutricional de laranjeiras. Eu achei legal, porque era algo muito diferente do que já tinha feito e trabalharia no campo. Então tive a parte de extensão, aprendi muita coisa que não tinha aprendido até então, fiz estágio e acompanhei produtores. Foi nessa época que decidi fazer uma disciplina chamada Fisiologia da Produção e passei a ver a importância das plantas, do solo e do solo para as plantas”.
Mestre e doutoranda
Giulia terminou a graduação desencantada com o solo, pois ela não se sentia instigada pelos professores da área. Apesar disso, seu sonho de ser cientista continuava. Ela fez seu mestrado na mesma universidade com foco em Agronomia Tropical.
Para o doutorado, a Giulia queria seguir pela Fitotecnia, pois ainda estava desencantada com estudos do solo. Ela queria, inclusive, que seu doutorado fosse na USP (Universidade de São Paulo).
“Foi por acaso que vi que a UFLA (Universidade Federal de Lavras) abriu um edital para vagas remanescentes em Ciência do Solo. Eu tinha acabado de ser reprovada na USP, aí eu decidi prestar na UFLA e passei”.
Atualmente ela dedica os estudos para conservação do solo e estoques de carbono: “Durante meu mestrado eu fazia caracterização de algumas áreas que não são muito comuns no Amazonas. São solos arenosos utilizados para extração de areia, e são áreas de difícil recuperação. Então eu estudava esses perfis de solo que tem areia branca, mas também uma quantidade de matéria orgânica que se desloca da superfície, ficando abaixo dessa camada de areia. São os Espodossolos. Comecei a pensar nessa matéria orgânica que observava em forma de agregados, como uma possibilidade de estoque de carbono no solo, o que eu estendi como um projeto para o doutorado sobre estoques e estabilização de carbono em alguns sistemas agrícolas como plantio direto, agricultura regenerativa, plantio convencional. Quero ver qual sistema contribui mais para esse estoque”, afirma, contando sobre a pesquisa que realiza em áreas agrícolas do Mato Grosso.
Mulher na ciência
Após o doutorado, ela pretende passar um tempo no exterior para entender como funciona a pesquisa em outros países. A longo prazo, pretende se tornar professora universitária, pois entendeu, através de uma experiência como professora de curso técnico, como ela é potente no ambiente acadêmico.
Além disso, notou como é importante ter professoras na universidade, visto que a primeira vez que teve uma referência feminina em sala de aula, na área de ciência do solo, foi no doutorado.
“A gente (por volta dos 30 anos) cresceu tendo referências mais fictícias do que reais, então nos inspiramos naquela mulher de negócios que não tem outra vida se não a carreira. Acredito que as meninas que estão vindo agora tem mais referências. Como disse, na minha época eu tinha só professores em disciplinas de Ciência do Solo, e hoje temos mais professoras, as áreas que eram mais masculinas também tem mais mulheres atuando”.
Se aumentou a quantidade de mulheres na ciência, também aumentaram as situações de machismo, por mais veladas que sejam. Giulia observa: ”Eu acho que ser uma mulher no ambiente acadêmico faz a gente ter mais função do que deveria, na maioria das vezes. Quando comparo meus colegas homens na mesma posição, vejo que a gente acaba assumindo algumas questões mais burocráticas, de auxílio, administrativas, gerencial, o que nos torna responsáveis por mais trabalho consequentemente”.
Para ter mais equidade no laboratório, no campo e onde mais quisermos, Giulia pontua que a educação tende mais para um lado do que para o outro: “Acho que a coisa básica é a mulher ter direito à educação. A maioria não tem. Muitas não têm a oportunidade de chegar no doutorado, por exemplo, pois, apesar de tudo, o ambiente acadêmico é mais masculino. Às vezes a mulher é uma cota no meio de uma mesa de discussão científica, por exemplo, porque poucas mulheres tiveram oportunidade de seguir com seus estudos para chegar a esses lugares”.
#MulherNoAgroSim
Giulia considera sua avó uma inspiração ao contrário. Ela cresceu ouvindo sobre ela ter aberto mão da carreira de professora para se dedicar inteiramente à casa, marido e filhos. Isso, com certeza, não é o que Giulia quer, já que suas ambições são mais parecidas com a de Johanna Döbereiner, agrônoma que descobriu a fixação biológica de nitrogênio no solo.
“Ser uma mulher no agro ou na ciência é sobre pertencer, porque uma vez que você tem certeza que você pertence àquele universo, você não vai dar atenção a quem diz que você não pertence”.
Foi emocionante ouvir a história da Giulia pois, como disse, toda criança já quis ser cientista em algum momento da vida. Ver que é possível e saber que, se não existe um espaço que nos cabe no laboratório, no campo, no mercado de trabalho ou aonde for, a gente cria. Basta que tenhamos nossos sonhos firmes e abracemos as possibilidades que fizerem sentido, como a Giulia fez.